Ñawêra
A cultura e a
língua são indissociáveis.
Os sentidos contidos
numa língua não são universais.
Cada língua carrega
em si especificidades da cultura na qual se originou.
Na prática
colonialista, os conceitos cristãos de “deus” e “diabo” foram indevidamente associados
às cosmovisões dos povos indígenas e demais povos tradicionais. A catequese,
para impôr seu deus como único, lidou com as manifestações não-cristãs do
sagrado de três formas diferentes: ignorando, ressignificando ou combatendo.
Os diferentes registros sobre a nossa
família linguística Puri ao longo do séc XIX demonstram que os sentidos que
foram atribuídos pelo rayôn (não-indígena) a Ñawêra –entidade da cosmovisão puri
–apresentam variações que vão literalmente do céu ao inferno:
Ñawêra (inyaüran) seria “deus” para
Schott;
Ñawêra (ñawuera, niuirang) seria “diabo”
para Eschwege e Martius.
O olhar cristão –que possui a
sua compreensão de bem e mal como dois extremos em eterna guerra –entrou em
conflito com as cosmovisões indígenas, que combinam elementos que foram associados
ora a um extremo, ora a outro. É o caso das entidades ligadas à proteção das
matas (floresta, rios e animais); essas
forças guardiãs, possuidoras de necessária firmeza e repreensão quanto ao
respeito às matas e os seres ali presentes, foram frequentemente relacionadas à ideia de “diabo”.
O exemplo mais conhecido de “demonização”
de uma entidade se refere a cosmovisões africanas: Exu –cujo nome em iorubá
significa “esfera”, por estar ligado à ideia de movimento –foi (e ainda é) enganosamente
identificado por religiosos cristãos como “diabo”.
Dentre as cosmovisões indígenas,
um dos exemplos possíveis dessa distorção se refere a Jurupari –cujo nome vem
do tupi “Yurupari”, que significa “boca torta” ou “boca fechada”. A entidade –relacionada à ideia de segredo –é presente na cultura de vários povos da região
Amazônica. Os Dessana possuem a cerimônia do Jurupari, referente ao rito da
puberdade masculina e também à celebração da abundância da pesca. Os Baniwa
vinculam a entidade ao dom da pajelança. Jurupari foi identificado pelos religiosos
jesuítas como “diabo”.
A vinda dos
jesuítas para a América serviu ao plano de construir aqui uma sociedade de
modelo europeu. Nessa época –século XVI –Estado e Igreja governavam juntos; o Diabo,
figura presente no imaginário e práticas religiosas europeias, foi aqui
utilizado como instrumento não só religioso, como também político, no controle
social sobre a população. Nas cartas trocadas entre os jesuítas e a Coroa
Portuguesa os cantos, danças e tudo que se relaciona com a espiritualidade
indígena são apontados como influência do Diabo; esse julgamento funcionou (e
ainda funciona) como justificativa para forçar os indígenas a abandonarem seus
costumes.
A figura do Diabo
ultrapassou os limites da ação jesuíta; permanece até os dias atuais incorporada
à cultura brasileira. A figura vai sendo modificada de acordo com a época e o
lugar, mas seu uso nunca perde o potencial de coagir e modelar comportamentos.
E sempre que alguém deseja exercer o controle sobre o cotidiano de pessoas,
povos ou grupos sociais, a influência do Diabo –tal como no século XVI –ressurge
como álibi.
Para compreender Ñawêra
é preciso deixar de lado a eterna luta entre Deus e o Diabo, e olhar além da
cosmovisão cristã.
HO ÑAWÊRA, PAÑIKE-YUÑÚN SÂNA
BRATÚ.
Oh Ñawêra, abra o nosso
caminho.
TXETENXÂM TXORÍ DAY KEMÚN.
Andar seguro na mata.
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