quinta-feira, 31 de maio de 2018

Txemím Puri

É equivocado pensar identidade indígena sem a noção de povo, sem a percepção do que nos vincula a um grupo e nos diferencia dos demais. Não por acaso, uma característica dos aldeamentos realizados no processo de colonização era separar as famílias extensas -que eram todas as pessoas que descendiam de um mesmo ancestral- e incentivar núcleos familiares de um casal e filhos. A perda do território intensificou esse processo de distanciamento entre os membros do povo, dispersando as famílias e mesmo os indivíduos. Dentro das cosmovisões indígenas, a terra é a base para o exercício da cultura e da espiritualidade de um povo; logo, sua ausência impacta nas condições dessas vivências.


A palavra povo torna-se, portanto, tão importante quanto a palavra Puri. Em nossa língua, a palavra que dá conta desse significado é txemím (gente). Esse termo apresenta semelhança com tximéon (indígena)e nesse aspecto dialoga com o uso equivalente em outras línguas indígenas, onde a palavra para definir o próprio grupo tem significados como 'gente verdadeira' (Huni Kuin, autodenominação dos Kaxinawá), 'nós humanos' (Tikmu'un, autodenominação dos Maxakali) ou simplesmente 'gente' (Akuáwa, autodenominação dos Assurini). A palavra txemím aparece também na expressão txemím-djáuma (traduzida como chefe da nação); trazendo o sentido de nação associado à ideia de gente e de indígenao termo expressa o conceito de povo.


Os puris existentes hoje, a exemplo de outros povos indígenas que também atravessaram tentativas de etnocídio,  deparam-se com o desafio da resistência dessa identidade no presente, a despeito dos impactos do processo histórico sobre sua língua, história e cultura -todos estes, aspectos que remetem à noção de povo. Uma parte fundamental dessa resistência é voltar a pensar/sentir como povo. É preciso superar o individualismo, valor predominante na sociedade rayon (branca, não-indígena) em que estamos inseridossem essa superação, mesmo a reafirmação de uma ancestralidade pode ser reduzida à esfera das aparências -uma exterioridade vazia- ou utilizada em disputas de poder dentro do grupo social.


Pensar identidade indígena é pensar pertencimento a uma coletividade. Sem a referência de grupo, mesmo que longe no tempo (ancestrais/outra época) ou no espaço (parentes em outro lugar), qualquer símbolo exterior de identidade torna-se esvaziado de sentido. Ao mesmo tempo, a consciência de que é o indivíduo que pertence à comunidade -não o contrário- mantém em equilíbrio os espaços de atuação dos indivíduos dentro dela.


O individualismo perde espaço à medida em que o senso de coletividade se fortalece. Se reconhecemos nossa origem comum, e reconhecemos que o curso da história agiu e age no propósito de nosso afastamento dos valores dessa ancestralidade, é preciso questionarmos os valores que foram/são impostos ou oferecidos em substituição. Se o reaproximar-se à origem, é a via que dá sentido à existência e sustentação de nossas identidades, essa caminhada passa a ser algo que nos une, nos irmana, e nos dá uma identidade comum. Partilhar as descobertas nessa estrada, nos aproxima uns dos outros enquanto parentes, e nos impulsiona a seguir juntos no experienciar dos conhecimentos, valores e práticas retomados. Daí percebemos a necessidade de nos reunirmos, dos encontros para a comunicação na nossa língua; de cada palavra que volta a ser falada entre os puris hoje; da vivência como txemim Puri.


Txemím Puri 
é como chamo esse meu movimento em direção ao meu povo -os vivos e os que já se foram, iniciado no momento em que tomei consciência de minha identidade.
É uma mesa na qual tenho depositado os frutos do meu trabalho de coleta,  caça e cultivo -de informação, conhecimento, inspiração, reflexão. É a partilha daquilo que alimenta o meu espírito e a minha identidade puri; identidade que é de pertencimento, e que se faz plena quando este alimento é compartilhado para servir os 
os satê prika (irmãos, irmãs)  de meu povo.


Txemím Puri é um projeto de pesquisa e compartilhamento de tahé-antáh-tri (conhecimento ancestralnas duas vertentes citadas na publicação sobre a palavra neste blog). É pessoal, pelo meu comprometimento em seguir com ele; é coletivo na medida em que satê prika comunguem dos mesmos valores que norteiam esse trabalho, e então sigamos juntos o caminho, tendo no horizonte a consciência de ser txemím.

Este blog tem sido até então, um dos espaços de execução desse projeto. A oralidade é tradicionalmente a base para a prática do ensino entre nós, povos indígenas. Esse princípio guia o trabalho que vem sendo feito nas oportunidades em que me reúno com os demais do meu povo, ocasião que permite a devida importância à palavra falada e nos possibilita o ouvir, o olhar, o sentir o outro; experimentarmos pronúncias, expressões, impressões. Por meio do diálogo e da produção de cantos -frutos de inspiração em movimento de acesso à nossa espiritualidade puri- compartilho com meus parentes cada novo conhecimento alcançado nas análises dos aspectos de nossa língua e nas leituras de pesquisas acerca da nossa história e cultura ancestral. O uso do meio virtual vem da necessidade de alcançar os parentes que estão mais distantes. 

Brikâng, satê príka, dáy tahé-antáh-tri sâna! 
Brikâng, txemím Puri!

(Vamos, irmãs/irmãos, no caminho do conhecimento ancestral! Vamos, povo Puri!)


Referências:

LEMOS, Marcelo S. Vocabulário da Língua Puri. Rio de Janeiro: Edição Digital, 2014.


LOUKOTKA, Chestmir. "La família lingüística coroado". In: Journal de la Societé des Américanistes. Tome 29, nº 1, 1937, pp. 157-214

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