domingo, 23 de setembro de 2018
quinta-feira, 31 de maio de 2018
Txemím Puri
É equivocado pensar identidade indígena sem a noção de povo, sem a
percepção do que nos vincula a um grupo e nos diferencia dos demais. Não por
acaso, uma característica dos aldeamentos realizados no processo de colonização
era separar as famílias extensas -que eram todas as pessoas que descendiam de
um mesmo ancestral- e incentivar núcleos familiares de um casal e filhos. A
perda do território intensificou esse processo de distanciamento entre os
membros do povo, dispersando as famílias e mesmo os indivíduos. Dentro das
cosmovisões indígenas, a terra é a base para o exercício da cultura e da
espiritualidade de um povo; logo, sua ausência impacta nas condições dessas
vivências.
Referências:
LEMOS, Marcelo S. Vocabulário da Língua Puri. Rio de Janeiro: Edição Digital, 2014.
LOUKOTKA, Chestmir. "La família lingüística coroado". In: Journal de la Societé des Américanistes. Tome 29, nº 1, 1937, pp. 157-214
A
palavra povo torna-se, portanto, tão importante quanto
a palavra Puri. Em nossa língua, a palavra
que dá conta desse significado é txemím (gente). Esse termo
apresenta semelhança com tximéon (indígena), e
nesse aspecto dialoga com o uso equivalente em outras línguas indígenas, onde a
palavra para definir o próprio grupo tem significados como 'gente
verdadeira' (Huni Kuin, autodenominação dos Kaxinawá), 'nós
humanos' (Tikmu'un, autodenominação dos Maxakali) ou
simplesmente 'gente' (Akuáwa, autodenominação dos
Assurini). A palavra txemím aparece também na
expressão txemím-djáuma (traduzida como chefe
da nação); trazendo o sentido de nação associado à
ideia de gente e de indígena, o
termo expressa o conceito de povo.
Os puris existentes hoje, a exemplo de outros povos indígenas que
também atravessaram tentativas de etnocídio, deparam-se com o desafio da
resistência dessa identidade no presente, a despeito dos impactos do processo
histórico sobre sua língua, história e cultura -todos estes, aspectos que
remetem à noção de povo. Uma parte fundamental dessa
resistência é voltar a pensar/sentir como povo. É preciso superar o
individualismo, valor predominante na sociedade rayon (branca,
não-indígena) em que estamos inseridos; sem essa
superação, mesmo a reafirmação de uma ancestralidade pode ser reduzida à esfera
das aparências -uma exterioridade vazia- ou utilizada em disputas de poder
dentro do grupo social.
Pensar identidade indígena é
pensar pertencimento a uma coletividade. Sem a referência de grupo, mesmo que
longe no tempo (ancestrais/outra época) ou no espaço (parentes em outro lugar),
qualquer símbolo exterior de identidade torna-se esvaziado de sentido. Ao mesmo
tempo, a consciência de que é o indivíduo que pertence à comunidade -não o
contrário- mantém em equilíbrio os espaços de atuação dos indivíduos dentro dela.
O individualismo perde espaço à
medida em que o senso de coletividade se fortalece. Se reconhecemos nossa
origem comum, e reconhecemos que o curso da história agiu e age no propósito de
nosso afastamento dos valores
dessa ancestralidade, é preciso questionarmos os valores que
foram/são impostos ou oferecidos em substituição. Se o reaproximar-se
à origem, é a via que dá sentido à existência e sustentação de nossas
identidades, essa caminhada passa a ser algo que nos une, nos irmana, e nos dá
uma identidade comum. Partilhar as descobertas nessa estrada, nos
aproxima uns dos outros enquanto parentes, e nos impulsiona a seguir juntos no
experienciar dos conhecimentos, valores e práticas retomados. Daí
percebemos a necessidade de nos reunirmos, dos encontros para a
comunicação na nossa língua; de cada palavra que volta a ser falada entre os
puris hoje; da vivência como txemim Puri.
Txemím Puri é como chamo esse meu movimento em direção ao meu
povo -os vivos e os que já se foram, iniciado no momento em que tomei
consciência de minha identidade.
É uma mesa na qual tenho depositado os frutos do meu trabalho de coleta,
caça e cultivo -de informação, conhecimento, inspiração, reflexão. É a partilha
daquilo que alimenta o meu espírito e a minha identidade puri; identidade
que é de pertencimento, e que se faz plena quando este alimento é
compartilhado para servir os os satê prika (irmãos, irmãs) de meu povo.
Txemím
Puri é um
projeto de pesquisa e compartilhamento de tahé-antáh-tri (conhecimento
ancestral, nas duas vertentes citadas na publicação sobre a palavra
neste blog). É pessoal, pelo meu comprometimento em seguir com ele; é coletivo
na medida em que satê prika comunguem dos mesmos
valores que norteiam esse trabalho, e então sigamos juntos o caminho, tendo no
horizonte a consciência de ser txemím.
Este blog tem sido até então, um dos espaços de execução desse
projeto. A oralidade é tradicionalmente a base para a prática do ensino entre
nós, povos indígenas. Esse princípio guia o trabalho que vem sendo feito nas
oportunidades em que me reúno com os demais do meu povo, ocasião que permite a
devida importância à palavra falada e nos possibilita o ouvir, o olhar, o
sentir o outro; experimentarmos pronúncias, expressões, impressões. Por meio do
diálogo e da produção de cantos -frutos de inspiração em movimento de acesso à
nossa espiritualidade puri- compartilho com meus parentes cada novo
conhecimento alcançado nas análises dos aspectos de nossa língua e nas leituras
de pesquisas acerca da nossa história e cultura ancestral. O uso do meio virtual
vem da necessidade de alcançar os parentes que estão mais distantes.
Brikâng, satê príka, dáy tahé-antáh-tri sâna!
Brikâng, txemím Puri!
(Vamos, irmãs/irmãos, no caminho do conhecimento ancestral! Vamos, povo Puri!)
Referências:
LEMOS, Marcelo S. Vocabulário da Língua Puri. Rio de Janeiro: Edição Digital, 2014.
LOUKOTKA, Chestmir. "La família lingüística coroado". In: Journal de la Societé des Américanistes. Tome 29, nº 1, 1937, pp. 157-214
segunda-feira, 28 de maio de 2018
Tahé-antáh-tri
A necessidade de chamar por um nome específico o conjunto de conhecimentos proveniente dos antigos puris -a sabedoria ancestral -me levou a pesquisar novamente os registros escritos da nossa língua. A reflexão a respeito do que eu tentava nomear, das palavras encontradas e seus significados; este é o objetivo desta postagem.
Em primeiro lugar, tenho que dizer o que entendo por sabedoria ancestral do nosso povo.
Uma parte dela são os conhecimentos encontrados entre alguns remanescentes puris mais velhos -ou mais velhas, já que há muitas anciãs nessa condição. Tem a ver com a cura pelas ervas, realização de partos, cuidado com recém-nascidos, e também com plantio, extração de matérias-primas da natureza, trato com animais, relação com os seres deste e de outros planos. A perseguição aos indígenas fez com que, geração após geração, esses remanescentes puris, que ainda conservam seu vínculo com a terra, fossem deixando de assumir identidade indígena; contudo, alguns conhecimentos ancestrais permaneceram, mesmo que não se reconheça sua origem de imediato -confundem-se com o universo rural e 'caboclo', assim como as próprias pessoas que os receberam de seus pais, mães e avós.
Outra parte do que chamo sabedoria ancestral se refere aos registros das práticas dos antigos puris -aquilo que foi escrito pelos pesquisadores e cronistas que tiveram contato com nossos ancestrais (em que pese a leitura eurocêntrica que fizeram daquilo que viram, obviamente).
Juntando-se essas duas partes, temos aquilo que prefiro chamar de saber dos antigos.
Pesquisando os registros de nosso vocabulário, chego à palavra tri, que significa saber.
A palavra que temos para ancestral está grafada como tahay-etta. Analisando as duas palavras que compõem o termo, chegamos a tahé, que significa velho, e etta (também grafada antah), que significa avô. A palavra avô também aparece como tahé em algumas fontes; a palavra velho, nesse caso, parece se referir a pessoa.
Num primero momento, poderíamos ler tahé-antah (ou tahay-etta) como 'velho avô'. Mas o adjetivo, em puri, costuma vir depois do substantivo -como é afirmado pelo linguista Loukotka e reforçado pelo filólogo Gamito, a partir de exemplos como mbl'êma schuteh (moça, mulher bonita) e pàmà pèoan (onça negra). Já na relação de pertencimento, ao contrário do que ocorre no português, o possuidor costuma vir antes daquilo que é possuído: tupan-guara é casa de deus; tapira-pé é couro de touro. Isso nos permite concluir que tahé-antáh seja avô do velho: este seria o significado literal de ancestral.
Diante do que foi exposto, me sinto à vontade para chamar o saber dos ancestrais de tahé-antáh-tri.
Essa é a forma que considero mais adequada para se referir à sabedoria puri.
Referências:
Em primeiro lugar, tenho que dizer o que entendo por sabedoria ancestral do nosso povo.
Uma parte dela são os conhecimentos encontrados entre alguns remanescentes puris mais velhos -ou mais velhas, já que há muitas anciãs nessa condição. Tem a ver com a cura pelas ervas, realização de partos, cuidado com recém-nascidos, e também com plantio, extração de matérias-primas da natureza, trato com animais, relação com os seres deste e de outros planos. A perseguição aos indígenas fez com que, geração após geração, esses remanescentes puris, que ainda conservam seu vínculo com a terra, fossem deixando de assumir identidade indígena; contudo, alguns conhecimentos ancestrais permaneceram, mesmo que não se reconheça sua origem de imediato -confundem-se com o universo rural e 'caboclo', assim como as próprias pessoas que os receberam de seus pais, mães e avós.
Outra parte do que chamo sabedoria ancestral se refere aos registros das práticas dos antigos puris -aquilo que foi escrito pelos pesquisadores e cronistas que tiveram contato com nossos ancestrais (em que pese a leitura eurocêntrica que fizeram daquilo que viram, obviamente).
Juntando-se essas duas partes, temos aquilo que prefiro chamar de saber dos antigos.
Pesquisando os registros de nosso vocabulário, chego à palavra tri, que significa saber.
A palavra que temos para ancestral está grafada como tahay-etta. Analisando as duas palavras que compõem o termo, chegamos a tahé, que significa velho, e etta (também grafada antah), que significa avô. A palavra avô também aparece como tahé em algumas fontes; a palavra velho, nesse caso, parece se referir a pessoa.
Num primero momento, poderíamos ler tahé-antah (ou tahay-etta) como 'velho avô'. Mas o adjetivo, em puri, costuma vir depois do substantivo -como é afirmado pelo linguista Loukotka e reforçado pelo filólogo Gamito, a partir de exemplos como mbl'êma schuteh (moça, mulher bonita) e pàmà pèoan (onça negra). Já na relação de pertencimento, ao contrário do que ocorre no português, o possuidor costuma vir antes daquilo que é possuído: tupan-guara é casa de deus; tapira-pé é couro de touro. Isso nos permite concluir que tahé-antáh seja avô do velho: este seria o significado literal de ancestral.
Diante do que foi exposto, me sinto à vontade para chamar o saber dos ancestrais de tahé-antáh-tri.
Essa é a forma que considero mais adequada para se referir à sabedoria puri.
Referências:
GAMITO, José Aristides da Silva. Pequeno Manual de Gramática e Vocabulário da
Língua Puri. Conceição de Ipanema: Edição Digital, 2016.
LEMOS, Marcelo S. Vocabulário da Língua Puri. Rio de Janeiro: Edição Digital, 2014.
LOUKOTKA, Chestmir. "La família lingüística coroado". In: Journal de la Societé des Américanistes. Tome 29, nº 1, 1937, pp. 157-214
LEMOS, Marcelo S. Vocabulário da Língua Puri. Rio de Janeiro: Edição Digital, 2014.
LOUKOTKA, Chestmir. "La família lingüística coroado". In: Journal de la Societé des Américanistes. Tome 29, nº 1, 1937, pp. 157-214
quinta-feira, 15 de março de 2018
Ténu-ahí
Tentar expressar, em outra língua, aquilo que é dito com frequência na língua materna ajuda a pensar melhor no que se diz todos os dias.
Muitos de nós fomos ensinados a dizer obrigado diante do bem que se apresenta. Recentemente, a palavra gratidão tem sido utilizada por algumas pessoas, em recusa à ideia de obrigação contida na velha fórmula de agradecimento.
As duas palavras -assim como boa parte da língua portuguesa -têm origem no latim. Obrigado vem de obligare, que significa atar, amarrar a algo ou alguém. Já a palavra gratidão se origina de gratia, que significa, literalmente, agradável.
Nem sempre as mudanças na linguagem refletem mudanças no modo de pensar. É possível recusar verbalmente a ideia de obrigação, e continuar amarrado a obrigações sociais e morais.
Acontece que gratia, em seu sentido original de agradável, traduz uma sensação, um estado de espírito, e não uma atitude ou relação social. Uma sobrevivência do sentido latino original é a expressão grata surpresa: não é uma surpresa agradecida, uma surpresa que se sente na obrigação de retribuir...é simplesmente uma surpresa agradável.
Antes de pensarmos em fazer algo a respeito do que recebemos, sentimos prazer (outra noção presente em expressões do latim que levam a palavra gratia). O prazer de receber carinho, de entrar num rio em dia de calor, de contemplar a lua, de sentir o gosto do alimento...é agradável, é gratia.
Agradável, em língua puri, é ténu-ahí.
Tendemos a naturalizar nossa forma de lidar com o bem e o mal, e transpô-la para outras culturas. É interessante observar como alguns aspectos da cosmovisão puri nos chegam através da crônica de Spix e Martius, cientistas alemães que tiveram contato com nossos ancestrais no século XIX: "Como se tudo que é bom passasse sem ser notado por ele [o puri], e apenas o que é desagradável lhe chamasse a atenção; ele não reconhece nenhuma causa do bem, nem Deus, mas apenas um princípio maligno, que o encontra às vezes na forma de um lagarto, de um homem com pés de veado, de um crocodilo ou de uma onça, às vezes se transformando num pântano, etc.; o desvia, o irrita, o leva a dificuldade e perigo e até o mata".
Em que pese o estranhamento presente nas palavras dos cronistas, descrevendo uma cultura que não é a deles, sugiro uma interpretação: os puris não se admiravam com o bem porque entendiam que fazia parte da ordem natural das coisas; só o mal chamava sua atenção, porque implicava desequilíbrio, desarmonia. Provavelmente, acreditavam num ser criador, como geralmente ocorre com os povos indígenas, mas não deviam acreditar que este ser tivesse que intervir no mundo para gerar o bem.
O bem como regra, o mal como exceção: a regra, o comum de todo dia; a exceção, o extraordinário.
Talvez por isso, agradecer dizendo apenas ténu-ahí, constatando que é agradável, possa parecer pouco a quem considera o bem extraordinário, num mundo onde o mal parece ser a regra.
Referências
LOUKOTKA, Chestmir. "La família lingüística coroado". In: Journal de la Societé des Américanistes. Tome 29, nº 1, 1937, p. 185.
Muitos de nós fomos ensinados a dizer obrigado diante do bem que se apresenta. Recentemente, a palavra gratidão tem sido utilizada por algumas pessoas, em recusa à ideia de obrigação contida na velha fórmula de agradecimento.
As duas palavras -assim como boa parte da língua portuguesa -têm origem no latim. Obrigado vem de obligare, que significa atar, amarrar a algo ou alguém. Já a palavra gratidão se origina de gratia, que significa, literalmente, agradável.
Nem sempre as mudanças na linguagem refletem mudanças no modo de pensar. É possível recusar verbalmente a ideia de obrigação, e continuar amarrado a obrigações sociais e morais.
Acontece que gratia, em seu sentido original de agradável, traduz uma sensação, um estado de espírito, e não uma atitude ou relação social. Uma sobrevivência do sentido latino original é a expressão grata surpresa: não é uma surpresa agradecida, uma surpresa que se sente na obrigação de retribuir...é simplesmente uma surpresa agradável.
Antes de pensarmos em fazer algo a respeito do que recebemos, sentimos prazer (outra noção presente em expressões do latim que levam a palavra gratia). O prazer de receber carinho, de entrar num rio em dia de calor, de contemplar a lua, de sentir o gosto do alimento...é agradável, é gratia.
Agradável, em língua puri, é ténu-ahí.
Tendemos a naturalizar nossa forma de lidar com o bem e o mal, e transpô-la para outras culturas. É interessante observar como alguns aspectos da cosmovisão puri nos chegam através da crônica de Spix e Martius, cientistas alemães que tiveram contato com nossos ancestrais no século XIX: "Como se tudo que é bom passasse sem ser notado por ele [o puri], e apenas o que é desagradável lhe chamasse a atenção; ele não reconhece nenhuma causa do bem, nem Deus, mas apenas um princípio maligno, que o encontra às vezes na forma de um lagarto, de um homem com pés de veado, de um crocodilo ou de uma onça, às vezes se transformando num pântano, etc.; o desvia, o irrita, o leva a dificuldade e perigo e até o mata".
Em que pese o estranhamento presente nas palavras dos cronistas, descrevendo uma cultura que não é a deles, sugiro uma interpretação: os puris não se admiravam com o bem porque entendiam que fazia parte da ordem natural das coisas; só o mal chamava sua atenção, porque implicava desequilíbrio, desarmonia. Provavelmente, acreditavam num ser criador, como geralmente ocorre com os povos indígenas, mas não deviam acreditar que este ser tivesse que intervir no mundo para gerar o bem.
O bem como regra, o mal como exceção: a regra, o comum de todo dia; a exceção, o extraordinário.
Talvez por isso, agradecer dizendo apenas ténu-ahí, constatando que é agradável, possa parecer pouco a quem considera o bem extraordinário, num mundo onde o mal parece ser a regra.
Referências
LOUKOTKA, Chestmir. "La família lingüística coroado". In: Journal de la Societé des Américanistes. Tome 29, nº 1, 1937, p. 185.
SPIX, J.B. von e MARTIUS, C.F.P. von. Travels in Brazil: in the years 1817-1820. London, 1824. p.243.
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