É equivocado pensar identidade indígena sem a noção de povo, sem a
percepção do que nos vincula a um grupo e nos diferencia dos demais. Não por
acaso, uma característica dos aldeamentos realizados no processo de colonização
era separar as famílias extensas -que eram todas as pessoas que descendiam de
um mesmo ancestral- e incentivar núcleos familiares de um casal e filhos. A
perda do território intensificou esse processo de distanciamento entre os
membros do povo, dispersando as famílias e mesmo os indivíduos. Dentro das
cosmovisões indígenas, a terra é a base para o exercício da cultura e da
espiritualidade de um povo; logo, sua ausência impacta nas condições dessas
vivências.
Referências:
LEMOS, Marcelo S. Vocabulário da Língua Puri. Rio de Janeiro: Edição Digital, 2014.
LOUKOTKA, Chestmir. "La família lingüística coroado". In: Journal de la Societé des Américanistes. Tome 29, nº 1, 1937, pp. 157-214
A
palavra povo torna-se, portanto, tão importante quanto
a palavra Puri. Em nossa língua, a palavra
que dá conta desse significado é txemím (gente). Esse termo
apresenta semelhança com tximéon (indígena), e
nesse aspecto dialoga com o uso equivalente em outras línguas indígenas, onde a
palavra para definir o próprio grupo tem significados como 'gente
verdadeira' (Huni Kuin, autodenominação dos Kaxinawá), 'nós
humanos' (Tikmu'un, autodenominação dos Maxakali) ou
simplesmente 'gente' (Akuáwa, autodenominação dos
Assurini). A palavra txemím aparece também na
expressão txemím-djáuma (traduzida como chefe
da nação); trazendo o sentido de nação associado à
ideia de gente e de indígena, o
termo expressa o conceito de povo.
Os puris existentes hoje, a exemplo de outros povos indígenas que
também atravessaram tentativas de etnocídio, deparam-se com o desafio da
resistência dessa identidade no presente, a despeito dos impactos do processo
histórico sobre sua língua, história e cultura -todos estes, aspectos que
remetem à noção de povo. Uma parte fundamental dessa
resistência é voltar a pensar/sentir como povo. É preciso superar o
individualismo, valor predominante na sociedade rayon (branca,
não-indígena) em que estamos inseridos; sem essa
superação, mesmo a reafirmação de uma ancestralidade pode ser reduzida à esfera
das aparências -uma exterioridade vazia- ou utilizada em disputas de poder
dentro do grupo social.
Pensar identidade indígena é
pensar pertencimento a uma coletividade. Sem a referência de grupo, mesmo que
longe no tempo (ancestrais/outra época) ou no espaço (parentes em outro lugar),
qualquer símbolo exterior de identidade torna-se esvaziado de sentido. Ao mesmo
tempo, a consciência de que é o indivíduo que pertence à comunidade -não o
contrário- mantém em equilíbrio os espaços de atuação dos indivíduos dentro dela.
O individualismo perde espaço à
medida em que o senso de coletividade se fortalece. Se reconhecemos nossa
origem comum, e reconhecemos que o curso da história agiu e age no propósito de
nosso afastamento dos valores
dessa ancestralidade, é preciso questionarmos os valores que
foram/são impostos ou oferecidos em substituição. Se o reaproximar-se
à origem, é a via que dá sentido à existência e sustentação de nossas
identidades, essa caminhada passa a ser algo que nos une, nos irmana, e nos dá
uma identidade comum. Partilhar as descobertas nessa estrada, nos
aproxima uns dos outros enquanto parentes, e nos impulsiona a seguir juntos no
experienciar dos conhecimentos, valores e práticas retomados. Daí
percebemos a necessidade de nos reunirmos, dos encontros para a
comunicação na nossa língua; de cada palavra que volta a ser falada entre os
puris hoje; da vivência como txemim Puri.
Txemím Puri é como chamo esse meu movimento em direção ao meu
povo -os vivos e os que já se foram, iniciado no momento em que tomei
consciência de minha identidade.
É uma mesa na qual tenho depositado os frutos do meu trabalho de coleta,
caça e cultivo -de informação, conhecimento, inspiração, reflexão. É a partilha
daquilo que alimenta o meu espírito e a minha identidade puri; identidade
que é de pertencimento, e que se faz plena quando este alimento é
compartilhado para servir os os satê prika (irmãos, irmãs) de meu povo.
Txemím
Puri é um
projeto de pesquisa e compartilhamento de tahé-antáh-tri (conhecimento
ancestral, nas duas vertentes citadas na publicação sobre a palavra
neste blog). É pessoal, pelo meu comprometimento em seguir com ele; é coletivo
na medida em que satê prika comunguem dos mesmos
valores que norteiam esse trabalho, e então sigamos juntos o caminho, tendo no
horizonte a consciência de ser txemím.
Este blog tem sido até então, um dos espaços de execução desse
projeto. A oralidade é tradicionalmente a base para a prática do ensino entre
nós, povos indígenas. Esse princípio guia o trabalho que vem sendo feito nas
oportunidades em que me reúno com os demais do meu povo, ocasião que permite a
devida importância à palavra falada e nos possibilita o ouvir, o olhar, o
sentir o outro; experimentarmos pronúncias, expressões, impressões. Por meio do
diálogo e da produção de cantos -frutos de inspiração em movimento de acesso à
nossa espiritualidade puri- compartilho com meus parentes cada novo
conhecimento alcançado nas análises dos aspectos de nossa língua e nas leituras
de pesquisas acerca da nossa história e cultura ancestral. O uso do meio virtual
vem da necessidade de alcançar os parentes que estão mais distantes.
Brikâng, satê príka, dáy tahé-antáh-tri sâna!
Brikâng, txemím Puri!
(Vamos, irmãs/irmãos, no caminho do conhecimento ancestral! Vamos, povo Puri!)
Referências:
LEMOS, Marcelo S. Vocabulário da Língua Puri. Rio de Janeiro: Edição Digital, 2014.
LOUKOTKA, Chestmir. "La família lingüística coroado". In: Journal de la Societé des Américanistes. Tome 29, nº 1, 1937, pp. 157-214
legal!!!
ResponderExcluirTênu-ahí
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