sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Ñawêra

A cultura e a língua são indissociáveis.

Os sentidos contidos numa língua não são universais.

Cada língua carrega em si especificidades da cultura na qual se originou.

Na prática colonialista, os conceitos cristãos de “deus” e “diabo” foram indevidamente associados às cosmovisões dos povos indígenas e demais povos tradicionais. A catequese, para impôr seu deus como único, lidou com as manifestações não-cristãs do sagrado de três formas diferentes: ignorando, ressignificando ou combatendo.

Os diferentes registros sobre a nossa família linguística Puri ao longo do séc XIX demonstram que os sentidos que foram atribuídos pelo rayôn (não-indígena) a Ñawêra –entidade da cosmovisão puri –apresentam variações que vão literalmente do céu ao inferno:


Ñawêra (inyaüran) seria “deus” para Schott;


Ñawêra (ñawuera, niuirang) seria “diabo” para Eschwege e Martius.


O olhar cristão –que possui a sua compreensão de bem e mal como dois extremos em eterna guerra –entrou em conflito com as cosmovisões indígenas, que combinam elementos que foram associados ora a um extremo, ora a outro. É o caso das entidades ligadas à proteção das matas (floresta, rios e animais); essas forças guardiãs, possuidoras de necessária firmeza e repreensão quanto ao respeito às matas e os seres ali presentes, foram frequentemente relacionadas à ideia de “diabo”.

O exemplo mais conhecido de “demonização” de uma entidade se refere a cosmovisões africanas: Exu –cujo nome em iorubá significa “esfera”, por estar ligado à ideia de movimento –foi (e ainda é) enganosamente identificado por religiosos cristãos como “diabo”.

Dentre as cosmovisões indígenas, um dos exemplos possíveis dessa distorção se refere a Jurupari –cujo nome vem do tupi “Yurupari”, que significa “boca torta” ou “boca fechada”. A entidade –relacionada à ideia de segredo –é  presente na cultura de vários povos da região Amazônica. Os Dessana possuem a cerimônia do Jurupari, referente ao rito da puberdade masculina e também à celebração da abundância da pesca. Os Baniwa vinculam a entidade ao dom da pajelança. Jurupari foi identificado pelos religiosos jesuítas como “diabo”.

A vinda dos jesuítas para a América serviu ao plano de construir aqui uma sociedade de modelo europeu. Nessa época –século XVI –Estado e Igreja governavam juntos; o Diabo, figura presente no imaginário e práticas religiosas europeias, foi aqui utilizado como instrumento não só religioso, como também político, no controle social sobre a população. Nas cartas trocadas entre os jesuítas e a Coroa Portuguesa os cantos, danças e tudo que se relaciona com a espiritualidade indígena são apontados como influência do Diabo; esse julgamento funcionou (e ainda funciona) como justificativa para forçar os indígenas a abandonarem seus costumes.

A figura do Diabo ultrapassou os limites da ação jesuíta; permanece até os dias atuais incorporada à cultura brasileira. A figura vai sendo modificada de acordo com a época e o lugar, mas seu uso nunca perde o potencial de coagir e modelar comportamentos. E sempre que alguém deseja exercer o controle sobre o cotidiano de pessoas, povos ou grupos sociais, a influência do Diabo –tal como no século XVI –ressurge como álibi.


Para compreender Ñawêra é preciso deixar de lado a eterna luta entre Deus e o Diabo, e olhar além da cosmovisão cristã.


HO ÑAWÊRA, PAÑIKE-YUÑÚN SÂNA BRATÚ.

Oh Ñawêra, abra o nosso caminho.


TXETENXÂM TXORÍ DAY KEMÚN.

Andar seguro na mata.