quinta-feira, 15 de março de 2018

Ténu-ahí

Tentar expressar, em outra língua, aquilo que é dito com frequência na língua materna ajuda a pensar melhor no que se diz todos os dias.
Muitos de nós fomos ensinados a dizer obrigado diante do bem que se apresenta. Recentemente, a palavra gratidão tem sido utilizada por algumas pessoas, em recusa à ideia de obrigação contida na velha fórmula de agradecimento.
As duas palavras -assim como boa parte da língua portuguesa -têm origem no latim. Obrigado vem de obligare, que significa atar, amarrar a algo ou alguém. Já a palavra gratidão se origina de gratia, que significa, literalmente, agradável. 
Nem sempre as mudanças na linguagem refletem mudanças no modo de pensar. É possível recusar verbalmente a ideia de obrigação, e continuar amarrado a obrigações sociais e morais.
Acontece que gratia, em seu sentido original de agradável, traduz uma sensação, um estado de espírito, e não uma atitude ou relação social. Uma sobrevivência do sentido latino original é a expressão grata surpresa: não é uma surpresa agradecida, uma surpresa que se sente na obrigação de retribuir...é simplesmente uma surpresa agradável.
Antes de pensarmos em fazer algo a respeito do que recebemos, sentimos prazer (outra noção presente em expressões do latim que levam a palavra gratia). O prazer de receber carinho, de entrar num rio em dia de calor, de contemplar a lua, de sentir o gosto do alimento...é agradável, é gratia.
Agradável, em língua puri, é ténu-ahí.
Tendemos a naturalizar nossa forma de lidar com o bem e o mal, e transpô-la para outras culturas. É interessante observar como alguns aspectos da cosmovisão puri nos chegam através da crônica de Spix e Martius, cientistas alemães que tiveram contato com nossos ancestrais no século XIX: "Como se tudo que é bom passasse sem ser notado por ele [o puri], e apenas o que é desagradável lhe chamasse a atenção; ele não reconhece nenhuma causa do bem, nem Deus, mas apenas um princípio maligno, que o encontra às vezes na forma de um lagarto, de um homem com pés de veado, de um crocodilo ou de uma onça, às vezes se transformando num pântano, etc.; o desvia, o irrita, o leva a dificuldade e perigo e até o mata".
Em que pese o estranhamento presente nas palavras dos cronistas, descrevendo uma cultura que não é a deles, sugiro uma interpretação: os puris não se admiravam com o bem porque entendiam que fazia parte da ordem natural das coisas; só o mal chamava sua atenção, porque implicava desequilíbrio, desarmonia. Provavelmente, acreditavam num ser criador, como geralmente ocorre com os povos indígenas, mas não deviam acreditar que este ser tivesse que intervir no mundo para gerar o bem.
O bem como regra, o mal como exceção: a regra, o comum de todo dia; a exceção, o extraordinário.
Talvez por isso, agradecer dizendo apenas ténu-ahí, constatando que é agradável, possa parecer pouco a quem considera o bem extraordinário, num mundo onde o mal parece ser a regra.

Referências


LOUKOTKA, Chestmir. "La família lingüística coroado". In: Journal de la Societé des Américanistes. Tome 29, nº 1, 1937, p. 185.


SPIX, J.B. von e MARTIUS, C.F.P. von. Travels in Brazil: in the years 1817-1820. London, 1824. p.243.